Covid-19 no Brasil: quantas mortes não contamos?
18% das mortes por COVID ficaram de fora dos dados oficiais no Brasil. O resultado? A subnotificação distorceu o verdadeiro impacto da pandemia.
Entre fevereiro de 2020 e maio de 2022, o Brasil estava em estado de emergência em saúde pública de importância nacional (ESPIN) devido à infecção humana pelo SARS-CoV-2, então chamado de “novo coronavírus”. Diariamente, a imprensa divulgava números de óbitos por Covid-19, além de médias móveis que, considerando os quinze dias anteriores, apontavam em que medida o cenário epidemiológico se alterava.
Tais dados não escapavam às múltiplas controvérsias que permeavam a pandemia. Enquanto a possibilidade de supernotificação (registro de mortes maior do que o real) era amplamente rejeitada pela comunidade científica internacional, construía-se um consenso em torno da subnotificação do número de óbitos.
Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e publicado em 2022 estimou que 18% das notificações de óbitos por causas mal definidas1 deveriam ter sido atribuídas à Covid-19. Para chegar a esse número, os pesquisadores reavaliaram 1.365 óbitos notificados entre fevereiro e junho de 2020 em Belo Horizonte (MG), Salvador (BA) e Natal (RN). O objetivo era determinar a real causa dessas mortes, a partir de prontuários médicos e registros laboratoriais atualizados depois da notificação dos óbitos.
É importante ponderar que não é possível determinar a magnitude da subnotificação. Estimativas podem variar conforme o escopo da amostra utilizada no estudo, a região em que os dados são produzidos etc.

Outros estudos buscaram estimar o "excesso de mortalidade" relacionado à pandemia. Esse fenômeno consiste no número de mortes (por todas as causas) registradas em determinada população que supera a quantidade esperada de óbitos naquele período, obtida estatisticamente com base no número de mortes observadas nos anos anteriores.
O Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), da Universidade de Washington, mostrou que, entre 2020 e 2021, o Brasil teve 792 mil mortes a mais do que seria esperado, com base nos padrões de mortalidade registrados entre 2010 e 2019. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que o excesso foi de 657 mil mortes no Brasil para o mesmo período2. Os cálculos apresentam resultados diferentes por questões metodológicas, e têm as mesmas limitações que qualquer estimativa. Seu papel é oferecer uma perspectiva do impacto que a pandemia teve na mortalidade, independentemente da causa.
Esses óbitos a mais não foram necessariamente causados pela Covid-19. Entre 2020 e 2021, mesmo período investigado pelos estudos mencionados, o Ministério da Saúde registrou 619 mil óbitos por Covid-193, um número menor que todas as estimativas de mortes “excessivas”. Essa diferença pode ser explicada por outras causas de morte que se agravaram durante a pandemia.
Um estudo liderado por demógrafos da UFMG analisou 15,8 milhões de registros de óbito ocorridos no Brasil entre 2020 e 2021, e concluiu que a Covid-19 impactou a taxa de mortalidade por outras causas. Mortes relacionadas a gravidez, parto e puerpério, diabetes e hipertensão, por exemplo, aumentaram conforme o padrão das duas ondas da pandemia (a primeira, entre março e outubro de 2020, com pico em julho; a segunda, entre novembro de 2020 e dezembro de 2021, com pico em abril de 20214).
Esses números, apesar das suas limitações metodológicas, evidenciam a gravidade da pandemia. Ao mesmo tempo, expressam lacunas no registro de dados epidemiológicos cruciais para a formulação de políticas públicas. Felizmente, o Brasil conta com sistemas de vigilância e informação em saúde que possibilitam estimativas robustas de morbimortalidade (incidência de doenças e morte) para a população em geral e para diferentes recortes (idade, gênero, cor, região etc.).
Desafio maior é determinar os impactos da pandemia sobre a mortalidade da população em situação de rua. Particularmente, interessa saber quantas pessoas em situação de rua morreram de Covid-19.
Na próxima edição de Cata-vento, tratarei dos óbitos por Covid-19 de pessoas em situação de rua, particularmente na cidade de São Paulo, que reúne o maior número de pessoas em situação de rua do país. Os dados divulgados pela Prefeitura foram contestados por um grupo de pesquisadores ligados à Universidade de São Paulo (USP), que propuseram um número quase duas vezes maior. Por fim, trarei resultados inéditos de uma investigação que realizei a partir de dados complementares, obtidos junto ao Governo do Estado de São Paulo.
Foram investigados os óbitos cuja causa básica notificada fosse síndrome respiratória aguda grave (SRAG), pneumonia não especificada, sepse, insuficiência respiratória e causas mal definidas. Cf. França et al., 2022.
No mundo todo, a estimativa da OMS chegou a 14,9 milhões de mortes “excessivas”, considerando apenas 2020 e 2021. Isso equivale a quase 9,5 milhões de mortes a mais do que todos os óbitos por Covid-19 registrados no mesmo período.
Foram 195.725 mortes por Covid-19 em 2020, 423.349 em 2021, e 74.779 em 2022, sendo 28.325 até o fim da ESPIN, em 22 de maio daquele ano. Os dados são do Centro de Inteligência Estratégica para a Gestão Estadual do SUS (CIEGES), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). O Ministério da Saúde compila e atualiza os dados diariamente. Até o dia 22 de abril de 2025, três anos depois da Portaria n. 188/2022 do Ministério da Saúde, que pôs fim à ESPIN, foram notificados 715.858 óbitos por Covid-19 no Brasil.
Para um estudo sobre a evolução temporal da morbimortalidade por Covid-19, cf. Moura et al., 2022.
Ótima pesquisa.